#06 Quando menos é mais
Oh it's such a perfect day I'm glad I spend it with you oh such a perfect day you just keep me hangin on you just keep me hangin on
Em um dos últimos treinos que fiz lá no Ibira, escolhi fazer a volta da grade. A ideia era correr na pista de terra, longe do vuco vuco. Foi interessante correr sem música, prestando atenção à minha respiração e perceber como ela se acomodava ao longo do treino sentindo que poderia correr assim por muito tempo.
Apenas correr, respirar e estar presente. Nesse dia também fiquei mais atenta ao ambiente, sentindo os pés contra a terra batida e observando a textura das folhas secas caídas. Me surpreendi viajando na mistura de cores entre o marrom e o dourado das folhas que se destacava da cor da terra, mais avermelhada. E como aqueles tons se sobressaíam ao marrom dos caules das árvores e de sua copa com infinitos matizes de verde.
Esse exercício de atenção me preencheu de tranquilidade e lembrei de um amigo que tem falado muito sobre correr ser diferente de treinar corrida. Correr é simples, ou pelo menos deveria ser. Pensando bem, a corrida tem sua dose de monotonia. Treinar nos mesmos percursos, ficar um tempo longo só com os pensamentos e ruminações. Por outro lado, o “lifestyle do running” acaba trazendo alguns excessos para prática de corrida e muitos deles trazem um peso desnecessário para o que deveria, a princípio, ser simples.
Correr fazendo este exercício de atenção me lembrou do filme Dias Perfeitos, do diretor alemão Wim Wenders. O filme retrata a rotina aparentemente banal de Hirayama, um homem de meia idade que leva seus dias com simplicidade quase monástica. Sua rotina se resume a acordar, cuidar das plantas realizar seu trabalho limpando banheiros públicos e repetir os mesmos gestos, refazendo o ciclo no dia seguinte, e no outro e no outro. A vida dele poderia resumir um bom paralelo a essência mais singela, monótona e sem tanto glamour da corrida.
Para quem não assistiu, deixo aqui minha recomendação. É um filme lento, mas que vale e a persistência. Quem viu, há de concordar comigo que em sua rotina aparentemente entediante, Hirayama desfruta a calma, vive o presente e faz um mergulho profundo no encantamento que viver com simplicidade pode proporcionar. Adoro a cena onde ele fala para sua sobrinha: “Agora é agora”. Uma frase aparentemente boba, mas que reflete algo quase intangível à nós, meros mortais, no dia a dia. Afinal, quantas vezes nos lembramos de respirar fundo e internalizar que agora é agora?
Muitas vezes me pego drenada em meio a toda essa abundância no mundo da corrida. As ofertas são variadas e chamativas: a melhor assessoria, o grupo de corrida mais interessante, o último modelo do tênis, aquela prova imperdível, a roupa que não posso deixar de ter, suplementos que irão aumentar minha performance, aquele treino que finalmente me levará onde quero chegar… e olha, eu nem sei se quero chegar a algum lugar.
O fato é que tudo isso rouba a simplicidade da experiência de correr e entender que agora pode ser só agora. E que a corrida pode (e deve) ser também um momento para encontrar tranquilidade em meio à toda turbulência da vida.
Nessa manhã, enquanto corria, busquei esse movimento de estar presente e me permitir degustar o momento. Foi importante pois me levou a reavaliar onde estou me deixando sequestrar pelo supérfluo. E também me fez pensar no quanto tenho deixado que isso consuma da minha atenção.
É verdade que muito do que me desconcentra funciona para evitar coisas e lugares para onde não estou com vontade de olhar. Por exemplo, gosto de correr ouvindo música pois, de certa forma, ela distrai um pouco do desconforto da corrida. Mas ao mesmo tempo, sei que a música me rouba presença. Não acho que isso seja nem ruim, nem bom. Mas o ideal, para mim, é ter consciência e tentar equilibrar as coisas.
De qualquer forma, é essencial não me deixar afundar nesse redemoinho infinito de distrações sem buscar espaço para entender o que procuro evitar e por que isso gera desconforto. Uma boa forma de abrir espaço para essa investigação é diminuir um pouco o volume do ruído externo e buscar mais presença na corrida.
E diminuir o ruído não significa que tudo fique menos interessante. Inclusive, pensando sobre Hirayama e o filme Dias Perfeitos, desconfio que seja o contrário. Sua vida interior é rica e seu olhar reflete isso. Sua simplicidade não é fruto de um minimalismo vazio. Pelo contrário, ele exercita sua alteridade de forma vigorosa, e mostra de maneira didática que intensidade não tem nada a ver com barulho.
Refletir sobre isso tudo me deu vontade de relacionar cada vez mais a corrida a essa experiência de tranquilidade. Para que isso aconteça, sei que será necessário deixar alguns excessos pelo caminho e me colocar com mais inteireza na experiência aceitando seus ônus e bônus. Experimentar algum incômodo é parte do pacote. O prêmio é correr desfrutando de momentos de simplicidade, como essa manhã na volta da grade. E talvez seja este o caminho para descobrir a riqueza no simples, pelo menos pela via da corrida. Como bem diz meu amigo, correr é diferente de treinar corrida. Por isso, é importante lembrar de vez ou outra apenas correr, sabendo que nem todo dia correndo será um dia perfeito, mas a busca por estar mais presente na corrida, com certeza irá fazer o dia (e a corrida) um pouco melhor.
🙂 Coisas legais para ler (e correr) e ouvir por aí:)
Deixo aqui a trilha sonora maravilhosa do filme Dias Perfeitos. Uma excelente pedida para um dia que você está afim de “só correr” e curtir a vibe 🧡
📚 Indico também o livro Nação Dopamina da Dra. Anne Lembke. Um livro fundamental para refletir sobre esse mundo de excessos em que vivemos.
👟Quem é a corredora do fim do mundo?
Prazer, sou Ligia Ribeiro, geóloga, pesquisadora das geociências e habitante do mundinho das corridas desde 2006. Além de correr gosto muito de escrever, assim, tem sido uma grande alegria juntar as duas coisas por aqui.
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